David Cronenberg: Observar a realidade para manipular os fios da audiência

David Paul Cronenberg, cineasta, escritor e actor, nasceu a 15 de Março de 1943 em Toronto, no Canadá. Tem actualmente 79 anos e é um dos principais criadores daquilo que é chamado «terror corporal», um subgénero de filme de terror que mostra intencionalmente alterações grotescas ou psicologicamente perturbadoras do corpo humano. As suas obras exploram representações da mutação, da doença, situações extremas envolvendo dimensões psíquicas, físicas e relações entre o indivíduo e a tecnologia. Como ele próprio referiu, «quando olho para uma pessoa vejo um turbilhão de caos orgânico, químico e electrónico, volatilidade e instabilidade cintilante e a capacidade de mudar, transformar e transmutar. 



Filho de um jornalista e de uma pianista, com origens judias na Lituânia, na casa de Cronenberg havia uma grande variedade de livros O seu pai tentou apresentá-lo a filmes de arte como «O Sétimo Selo» de Ingmar Bergman, embora na época Cronenberg estivesse mais interessado em Westerns e filmes de piratas, manifestando uma preferência particular pelo actor Burt Lancaster.
Gostava de revistas de ficção científica como «The Magazine of Fantasy & Science Fiction», «Galaxy» e «Astounding», lendo autores que seriam influentes no seu trabalho, mormente Ray Bradbury e Isaac Asimov. Mas a sua principal influência, Philip K. Dick, só seria descoberta mais tarde. William Burroughs e Vladimir Nabokov são igualmente autores estruturantes do seu imaginário. Também apreciava banda desenhada destacando como favoritos Tarzan, Little Lulu, Uncle Scrooge, Blackhawk, Plastic Man, Superman e a versão original da Fawcett Comics do Capitão Marvel, mais tarde conhecida como Shazam.
Entre os filmes que mais tarde se mostraram influentes na sua carreira constam «Un Chien Andalou» realizado por Luis Buñuel, «Vampyr» realizado por Carl Theodor Dreyer, «War of the Worlds» realizado por Byron Haskin, «Freaks» realizado por Tod Browning, «Creature from the Black Lagoon», realizado por Jack Arnold, «Alphaville» realizado por Jean-Luc Godard, «Performance» realizado por Donald Cammell e Nicolas Roeg e «Duel» realizado por Steven Spielberg. Cronenberg referiu, também, como influências, filmes menos óbvios, incluindo a comédia surrealista «The Bed Sitting Room» realizada por Richard Lester e animações da Disney como «Bambi» e «Dumbo».
Frequentou o ensino secundário no Harbord Collegiate Institute e o North Toronto Collegiate Institute. Um grande interesse pela ciência, especialmente botânica e lepidopterologia levou-o a entrar no programa Honors Science da Universidade de Toronto em 1963, mudando depois para o Honors English Language and Literature. Nesta instituição realizou as suas primeiras experiências de filmes em curta-metragem.


Enquanto estudante, ficou fascinado pelo cinema e, entre 1966 e 1970, elaborou várias curtas e longas-metragens experimentais.
Em parceria com Ivan Reitman e com o apoio financeiro do governo do Canadá para realizar os seus filmes ao longo da década de 1970, Cronenberg dirigiu «Shivers» em 1975, no qual um parasita que se espalha por um arranha-céus de Montreal, transforma os moradores em mortos-vivos que só querem ter relações sexuais e «Rabid» em 1977, o qual forneceu à actriz porno Marilyn Chambers um papel diferente dos que a popularizaram, embora a primeira escolha tenha sido a então pouco conhecida Sissy Spacek. Os seus próximos dois filmes de terror, «The Brood» de 1979 no qual os impulsos inconscientes de uma mulher em tratamento psiquiátrico causa o nascimento de crianças assassinas deformadas e «Scanners» de 1981, obtiveram maior projecção. «Fast Company» de 1979 reflecte o seu interesse em corridas de automóveis e gangues de bicicletas.
Na década de 1980 realizou quatro grandes filmes: «Videodrome» e «The Dead Zone» em 1983, «The Fly» em 1985, aclamado pela crítica e pelo público, com elogios principalmente em relação aos efeitos especiais e interpretação de Jeff Goldblum e «Dead Ringers» em 1988, considerado pelos críticos do Festival Internacional de Cinema de Toronto como um dos 10 melhores filmes Canadianos de todos os tempos e no qual a personagem Elliott Mantle pergunta: «Why are there no beauty contests for the insides of bodies»?
Em «Videodrome», Cronenberg imaginou um canal de televisão que transmite conteúdos sexuais e violentos explícitos que causam alucinações e até mutações físicas nos espectadores. Em «The Fly», o biólogo Seth Brundle (o actor Jeff Goldblum) ao estudar o teletransporte por desagregação e reintegração molecular, usa-se como cobaia numa das suas experiências. Esta corre bem, mas com um imprevisto: antes de se iniciar o processo, uma mosca entra no aparelho de teletransporte. Ao ser reconstituído, as moléculas do seu corpo misturam-se com as do insecto, originando um ser híbrido, acabando por predominar as características do segundo. Este filme baseia-se numa história escrita por George Langelaan e teve uma adaptação e duas sequelas entre 1958 e 1965. Recebeu o Óscar da Academia para a Melhor Maquilhagem.
Na década seguinte, quatro outros filmes memoráveis iluminaram o mundo da cinefilia: o alucinado «Naked Lunch» em 1991, «M. Butterfly» em 1993, «Crash» em 1996 que estreou no Festival de Cinema de Cannes e recebeu o Prémio Especial do Júri «pela originalidade, ousadia e audácia» e «eXistenZ» em 1999 uma narrativa passada numa realidade virtual.
No primeiro decénio do século XXI sucederam-se «Spider» em 2002, sobre a doença mental, «A History of Violence» em 2005, «uma meditação sobre o corpo humano e a sua relação com a violência» e «Eastern Promises» em 2007 que muitos críticos consideraram ser um dos melhores filmes desse ano.
Entre 2011 e 2022 realizou «A Dangerous Method», sobre a relação entre Jung, Freud e Sabina Spielrein, «Cosmopolis» em 2012, «Maps to the Stars» em 2014, sobre a indústria do entretenimento e «Crimes of the Future», no qual, num futuro indeterminado com significativos avanços na biotecnologia, um casal de artistas de performance efectuam cirurgias para o público.
Casou-se pela primeira vez com Margaret Hindson, em 1972, com quem teve uma filha (Cassandra Cronenberg). O casamento terminou em 1979 devido a divergências pessoais e profissionais. A sua segunda esposa foi Carolyn Zeifman, uma editora de cinema, com quem esteve casado até à sua morte em 2017. Tiveram duas filhas (Caitlin e Brandon).


No livro «Cronenberg on Cronenberg», revelou que «The Brood» foi inspirado em episódios da vida privada que ocorreram durante o seu primeiro casamento, os quais lhe causaram perturbações assim como na sua filha Cassandra. Na mesma obra refere que durante a sua adolescência passou por uma fase em que se interrogou sobre a existência de Deus, tendo finalmente chegado à conclusão que o conceito de Deus foi desenvolvido para lidar com o medo da morte. Explicou ainda o papel que o ateísmo tem no seu trabalho, afirmando: «Vamos discutir a questão existencial. Todos nós vamos morrer, este é o fim de toda a consciência. Não há vida após a morte. Não há Deus. E agora, o que fazemos? Esse é o ponto mais interessante para mim».
Para além de ser actor ocasional em filmes seus e de outros realizadores como Gus Van Sant, Michael Apted, Gary Ledbetter ou Don McKellar, e em séries de televisão, escreveu em 2014 o romance «Consumed» versando sobre a investigação de dois jornalistas a um filósofo que pode ter comido sua esposa.

Leonor Sacadura

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